Quais as vantagens de investir na formação de Médicos de Família?

Pode-se dizer recente no Brasil, a especialidade do Médico de Família e Comunidade, foi reconhecida pela Comissão Nacional de Residência Médica em 1981, à época com o nome de Medicina Geral Comunitária. Tem como prioridade as medidas de prevenção e diagnóstico de doenças, acompanhando os pacientes desde criança e por toda a vida, com consultas e exames regulares.

Com aptidão para atender 80% dos problemas de saúde, o Médico de Família se dedica também a conhecer o contexto do ambiente, da família e da comunidade onde vive o paciente. 

O Médico de Família pode assistir crianças, mulheres gestantes realizando pré-natal, prevenções ginecológicas, urológicas e, caso veja necessidade, pode encaminhar o paciente para um especialista. Se ocupa também da recomendação da prática de ações que não sejam nocivas à saúde em todas as fases da vida, física e mentalmente, como exercícios e alimentação balanceada.

Em alguns países, esse profissional é chamado de clínico geral ou médico generalista.

A Medicina de Família e Comunidade no Brasil ainda é exercida preponderantemente na atenção primária à saúde do SUS. A especialidade foi criada alguns anos após a Conferência de Alma Ata, quando diversas nações e a Organização Mundial da Saúde procuravam meios para enfraquecer a hegemonia do modelo de atenção à saúde então vigente.

O Programa Saúde da Família (PSF), era restrito à determinadas populações, mas com a ESF – Estratégias de Saúde de Família a atenção foi ampliada e atualmente, as equipes de saúde da família, formadas por médico generalista, enfermeiro, técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde representam mais de 90% do total na atenção primária à saúde, superando as equipes tradicionais ainda existentes, compostas por médicos clínicos, ginecologistas-obstetras e pediatras, como no Brasil nas décadas de 1970 e 80.

Em Florianópolis, a atenção primária à saúde é realizada diretamente pelo Município, que responde pela manutenção da estrutura física das UBS, pelo abastecimento e gestão do trabalho.

No Rio de Janeiro e São Paulo, as duas maiores cidades do país, a gestão da atenção primária à saúde é atribuída a entidades sem fins lucrativos, as chamadas Organizações Sociais (OS). Esse modelo, contudo, não conta com a chancela dos movimentos sociais e dos especialistas, em razão de provável precarização das relações de trabalho e problemas referentes à transparência nos contratos.

A Medicina de Família e Comunidade, como já dito, é especialidade relativamente nova, portanto, é escassa a quantidade de médicos especialistas necessária para formação das equipes de atenção primária pública e privada. Essa deficiência foi reduzida temporariamente com a implantação do Programa Mais Médicos, que preencheu de 2013 até 2018, data de sua suspensão, 18 mil profissionais de saúde na atenção básica pública. Não fosse isso, o Brasil ainda possui uma oferta de médico por mil habitantes inferior àquela encontrada em outros países que utilizam sistemas universais de saúde semelhantes. Ademais, a maioria dos médicos formados se direciona a especializações hospitalares.

Sistemas de saúde que se escoram numa atenção primária robusta e resolutiva apresentam   melhor custo efetividade. A função precípua da atenção primária é selecionar os pacientes que necessitam de tratamento e/ou acompanhamento na atenção especializada, dos demais que procuram os Postos de Saúde. Assim, além de fornecer atendimento célere e imediato ao usuário, diminui o número de prescrições excessivas, desnecessárias, eventualmente prejudiciais e a solicitação descabida de exames, que comprometem a eficiência do sistema. Ademais, evitando o acompanhamento simultâneo de médicos de diversas especialidades pode-se contribuir para a maior oferta de vagas.

Relativamente ao Município de Florianópolis, considerada a melhor capital brasileira quando se trata de atenção primária, verifica-se por meio de estudo desenvolvido no Trabalho de Conclusão de Residência do médico Ricardo Collar Rebolho, que a cobertura populacional oferecida pelo SUS e ESF é de 100%, sendo composta em 70% por médicos com formação em medicina de família e comunidade.

Referida pesquisa demonstra ”que a formação em MFC através da residência médica reduziu significativamente o percentual de encaminhamentos da atenção primária para a atenção especializada. Este impacto manteve-se mesmo com os ajustes para as possíveis variáveis confundidoras analisadas. Podemos levantar algumas hipóteses para a explicação dessa diferença. Entre elas o fato da residência em MFC contemplar um período de atuação de dois anos, sob supervisão de outro MFC mais experiente, nos quais o residente adquire capacidade para lidar com a maior parte dos problemas de saúde apresentados pela população, aumentando seu poder de resolução. Além disso o residente aprende os princípios da MFC e pode aplicá-los na sua prática, como a longitudinalidade, em que desenvolve um vínculo com o paciente e poderá acompanhá-lo ao longo de um período de tempo maior que poderá ser útil para definir quais casos realmente precisam de um encaminhamento e quais podem ser resolvidos na atenção primária. Também o princípio do acesso, amplamente discutido nos programas de residência em MFC, em que o residente valoriza a importância dos pacientes” (Rebolho, R. C. Poli Neto, Pedebo L. P. Vidor, A.C. Médicos de família encaminham menos? Impacto da formação em MFC no percentual de encaminhamento da atenção primária. Cien Saude Colet [periódico na Internet] (2019/jul). [Citado em 05/12/2019]. Está disponível em: http/www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/médicos-de-familia-encaminham-menos-impacto-da-formacao-em-mfc-no-percentual-de-encaminhamentos-da-atencao-primaria/17288?id=17288.

O estudo está lastreado na avaliação de 375.645 consultas e de 34.776 encaminhamentos colhidos do sistema informatizado, dados oriundos de consultas efetuadas por médicos nos diferentes grupos de acordo com a formação e possibilita a aferição de algumas variáveis confundidoras dos médicos, pacientes e do serviço.

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Vantagens do investimento na atenção básica

No sistema de saúde de vários países, dentre eles os mais desenvolvidos do mundo, existe forte tendência de investimento na consolidação da atenção primária de saúde.

A reestruturação do modelo de saúde, com ênfase na atenção primária, busca como principal resultado encontrar a fórmula para o acesso aos serviços de saúde a todos os cidadãos e para alcançar um nível de assistência sem as barreiras impostas costumeiramente pelas desigualdades sociais.

A Atenção Primária à Saúde (APS), no mundo, resumidamente, propõe uma assistência dirigida à população de uma determinada região, de forma regular e organizada, por meio de proposições e experiências que ofereçam ações preventivas e curativas, atendendo indivíduos e comunidades.

No Brasil, a APS é designada como Atenção Básica à Saúde (ABS) e incorpora os princípios da Reforma Sanitária, reforçando a adoção de um modelo assistencial universal e integrado de atenção à saúde.

A Atenção Primária é um conceito que surge pela primeira vez, em 1920, por meio de um relatório do governo inglês, preocupado com o alto custo da atenção médica e a baixa resolutividade. O relatório se contrapôs ao modelo biomédico vigente à época, proposto por Flexner, o modelo flexineriano americano. Tal modelo, ainda vincula o ensino nos cursos de saúde e nega a saúde pública, a saúde mental e as ciências sociais.

A preocupação econômica dos países desenvolvidos, em pesquisar novas formas de organização sustentável da atenção à saúde, não era compartilhada pelos países pobres e em desenvolvimento, cujas populações, carentes de condições sociais, econômicas e sanitárias, padeciam com a falta de acesso aos cuidados básicos e experimentavam alta taxa de mortalidade infantil.

A Declaração de Alma-Ata, datada de 1978, como foi chamado o pacto assinado entre 134 países, defendeu os cuidados primários de saúde, nos seguintes termos:

“Os cuidados primários de saúde são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e autodeterminação. Fazem parte integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde. (Opas/OMS, 1978)”

Os propósitos de Alma-Ata, que conceberam os cuidados básicos de saúde como um direito humano, também propunham a redução de gastos com armamentos, aumento de investimentos em políticas sociais e produção e fornecimento de medicamentos, nunca foram totalmente implementados.

O Brasil empreendeu várias tentativas para criar os meios de implantar uma efetiva Atenção Primária, mas somente quando essas ações foram somadas à constituição do SUS foi possível uma revisão do modelo assistencial.

Atualmente, a principal estratégia de configuração da ABS no Brasil é a saúde da família que tem recebido importantes incentivos financeiros visando à ampliação da cobertura populacional e à reorganização da atenção.

A Inglaterra, país que desde 1948 possui um sistema público de saúde universal que serve de modelo para o mundo (o National Health Service – NHS), mostra que o caminho não é retirar o dinheiro da atenção primária à saúde (APS) para aplicar em serviços hospitalares ou de emergência.

O investimento na Atenção Primária pode contribuir para redução de cerca de 5% do total de internações, segundo levantamento da UNIDAS (União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde). Pelo menos 5,2% de todas as internações ocorridas no sistema de saúde foram classificadas como evitáveis (Pesquisa UNIDAS – 2018). Em número absolutos, esse total é de mais de 20 mil internações que representam o montante financeiro de quase R$ 400 milhões (ano). A redução de internações importa em redução de gastos e uma vida com mais qualidade ao beneficiário. Acompanhar o paciente de maneira sistemática, propondo a prevenção de doenças por meio de atividades e ações, pode evitar exames e internações desnecessárias, em especial dos mais idosos.

Dados epidemiológicos, extraídos de estudos da revisão sistemática da literatura sobre o risco de internação associadas por condições sensíveis à Atenção Primária (1), dão conta de que a ampliação do acesso ao sistema de saúde apontam para a diminuição de internações por condições sensíveis à APS. Condições Sensíveis à Atenção Primária (CSAP) são problemas de saúde evitáveis atendidos por ações típicas do primeiro nível de atenção e cuja evolução, na falta de atenção oportuna e efetiva, pode exigir a hospitalização, como pneumonias bacterianas, complicações da diabete e da hipertensão, asma, entre outros. Tais hospitalizações servem de instrumento para a avaliação e monitoramento da efetividade desse nível do sistema de saúde.

 

(1) por Fúlvio Borges NedelI; Luiz Augusto FacchiniII; Miguel MartínIII; Albert NavarroIII – ICurso de Medicina, Universidade de Santa Cruz do Sul , Santa Cruz do Sul-RS, Brasil. Grups de Recerca d’Amèrica i Àfrica Llatines, Unitat de Bioestadística, Facultat de Medicina, Universitat Autònoma de Barcelona (GRAAL-UAB), Barcelona, Espanha

IIPrograma de Pós-Graduação em Epidemiologia, Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas-RS, Brasil

IIIGrups de Recerca d’Amèrica i Àfrica Llatines, Unitat de Bioestadística, Facultat de Medicina, Universitat Autònoma de Barcelona (GRAAL-UAB), Barcelona, Espanha

 

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